Cuidado com os fogos de Artifícios

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Cãotinho Literário

Ética e Animais


Ricardo Timm de Souza

Prof. PUC-RS


Quem têm sido os animais ao longo da história do poder humano? Podemos iniciar caracterizando o que, por efeito dos impulsos de conquista humanos, de seu ímpeto no sentido de tentar "transformar o universo em um gigantesco campo de caça" (ADORNO; HORKHEIMER, Dialética do Esclarecimento), os animais não têm podido ser: co-autores da sustentabilidade ético- ecológica do planeta, ou seja, "outros". Máquinas vivas, alvos fáceis da vontade de destruição racional, objetos de exploração de todos os tipos, de tortura, de decoração e uso, sem falar em alimento sempre à mão, os animais experimentaram desde sempre todo tipo concebível de violência humana. Incapazes de argumentar senão com sua existência nua, expostos a todas as agruras por existirem sem poderem se contrapor a seres empenhados não apenas em reduzir obsessivamente a existência da realidade externa a uma função sua, mas em determinar absolutamente o valor de realidade do Outro que si mesmo exclusivamente a partir de categorias destiladas por seu próprio cérebro, algo mais desenvolvido em suas funções cognitivas, os animais não-humanos ocuparam sempre o lugar de alvo predileto de uso violento-objetificador da vida pelos animais humanos..

Se é verdade que em todos os níveis da vida, da relação ser humano-natureza, evidenciou-se uma contínua disposição de transformação da natureza para fins poucos sustentáveis — situação que ninguém hoje ignora exatamente pelas reações da própria natureza como um todo, por exemplo, na questão do aquecimento global —, é ainda mais verdade que em relação aos seres animados, e especificamente aos animais superiores, uma tal violência contínua cultivou e deu à luz os piores frutos da mania objetificante do homo sapiens. É uma questão de justiça histórica, e de justiça para com os vencidos em estilo benjaminiano e derridiano, lembrar que, até não muito tempo atrás, filósofos subiam a cátedras para explicar que as expressões de dor de animais vivissecados e torturados não eram de dor, mas reações maquínicas de uma máquina, já que aos animais faltaria a razão — talvez a razão de que se serviam tais filósofos para destilarem tais argumentos.

Todos esses fatos nos ajudam a perceber de forma cabal que, se é verdade que a crise que ora vivenciamos tem proporções inusitadas — e tudo leva a crer que tal se apresenta mais e mais como límpida verdade, como se pode observar pelas exigências que a natureza como um todo faz à ação humana, ultimato cuja alternativa é o extermínio dessa doença — o homem — que grassa sobre a pele da terra, como diria um Nietzsche — então é hora que se perceba finalmente, como já se sugeriu bem ao início do texto, que a categoria filosófica realmente adequada para conceber a existência dos animais é a Alteridade. Como toda realidade — não apenas a realidade humana — também os animais estão infinitamente além da capacidade de representação que deles se tenha, e o ônus da objetificação é exclusivamente de quem.

Assim, a frase de Adorno, “A filosofia existe propriamente para fazer justiça ao que se dá no olhar de um animal”, assume um novo sentido: repositório de Alteridade desconsiderada pelos grandes tratados, os animais olham-nos desde o fundo da existência mesma, particular e não-intercambiável, totalmente singular por mais que sejam multidão, irredutível a generalidades ou ontologias gerais. Sua vida fala de outro modo que meramente existindo: chama- nos a atenção, de modo pertinaz e infinitamente repetível, para a banalidade dos assassinatos, cometidos em série ou não, que têm, além de objetivos pragmáticos, objetivos crípticos de anular outras modalidades de existência, e evidenciam de modo definitivo os limites da capacidade representacional do intelecto identificante. Pois, ao contrário do que diz Levinas, também os animais podem ser assassinados (e não meramente "mortos"), e não apenas os homens, e o são tanto pelo menos tanto quanto os homens o são.

Concluamos, portanto, está mais do que na hora de nos despirmos de nossos preconceitos antropomórficos e entendermos finalmente que a percepção ética da Alteridade dos animais não é uma veleidade intelectual, ou um capricho contemporâneo, mas — além de um imperativo ético radical — uma questão de sobrevivência, e sobrevivência não apenas dos animais não-humanos, mas muito especificamente do único animal sobre o qual recairá a responsabilidade do fracasso absoluto, se a antevisão da catástrofe ético-ecológica que se insinua nas consciências lúcidas se realizar.

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"Não comer carne significa muito mais para mim que uma simples defesa do meu organismo; é um gesto simbólico da minha vontade de viver em harmonia com a natureza. O homem precisa de um novo tipo de relação com a natureza, uma relação que seja de integração em vez de domínio, uma relação de pertencer a ela em vez de possuí-la. Não comer carne simboliza respeito à vida universal." Pierre Weil
"A questão não é a de saber se o animal pode pensar, raciocinar ou falar... a questão é: Eles podem sofrer?” Jeremy Bentham
 
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